A Ciência da Política
Data de publicação: 08 de março de 2024

Sobre o “papagaísmo político”

Tullio Damin Da Sois

Chefe de Gabinete

Cientista Político


Gosto muito do poder esclarecedor das páginas de um dicionário, por mais enxuto que ele seja. Por diversas vezes, e principalmente quando tratamos de temas mais profundos e complexos como a política, se pararmos para prestar bem atenção nas palavras que saem das bocas alheias, assim como das nossas próprias bocas, seremos capazes de perceber um certo – e bem comum – fenômeno.


O ser humano tem uma certa tendência a repetir algumas palavras, expressões, frases e ditados como se não fosse um ser humano consciente, mas sim um papagaio. É aquela maldita tendência que temos de ficar repetindo algo que escutamos ou lemos pois tal coisa tem sua origem em alguma fonte com a qual simpatizamos ou sentimos que compartilhamos ou temos algo em comum. É o incrível fenômeno de “papagaiarmos” aquelas palavras que possuem uma certa aura, que ressoam positivamente para nós mesmos e para a opinião pública, que despertam o sentimento de que aquilo que estamos reproduzindo possui um significado virtuoso e que, portanto, pelo mero ato de estarmos propagando tais palavras automaticamente assumimos uma posição de representação e projeção de tal virtude.


Nas sociedades contemporâneas como a nossa, sociedades de massas fortemente condicionadas pela pressão esmagadora da opinião pública corrente massificada, a “arte do papagaísmo” político é um fenômeno muitíssimo disseminado, em alta, cada vez mais comum e mais facilmente perceptível. Essa “arte” pode ser abordada de forma mais complexa e científica, mas esse não é o propósito do texto de hoje. Uma simples consulta ao dicionário – a duas palavras apenas – é capaz de resumi-la de forma simples e facilmente compreensível a qualquer ser humano que seja capaz de afirmar que 2 + 2 são 4.


Refiro-me às palavras bordão e chavão. E vejam que coincidência: seus significados são tão próximos que elas chegam a rimar – deve ser a força do destino. Enfim, um bordão é uma palavra, expressão ou frase que um indivíduo repete viciosamente ao falar ou escrever. Já um chavão é um dito ou frase repetida abusivamente e que, por isto, perde o seu valor expressivo. Dessa forma, dá até para dizer que o chavão é uma espécie de evolução degenerada do bordão. O vício da repetição abusiva e desenfreada do “papagaísmo” é tão danoso à linguagem que chega ao ponto do esvaziamento das palavras de seus próprios significados originais.


E é aí, meus amigos, que mora o perigo. A bem da verdade, a imensa maioria das pessoas que age feito um papagaio com termos como “democracia”, “Estado Democrático de Direito”, “liberdade”, “igualdade” e “justiça” – só para citar algumas das palavras e expressões mais comumente escutadas no debate político de hoje em dia – o faz Tullio Damin Da Sois Chefe de Gabinete Cientista Político inconscientemente. Trata-se de pessoas que estão meramente absorvidas por alguma identidade ideológica coletiva e que por mero automatismo reproduzem aquilo que recebem dos líderes formadores de opinião de sua própria tribo. São a mera claque que, conduzida por sentimentos e percepções ideologicamente condicionadas, entra no modo de “papagaio político” pois tal comportamento traz conforto ao estômago e ao coração – afinal de contas, o mero fato de ser capaz de reproduzir tal palavra ou discurso automaticamente a coloca do “lado certo” da História. É a virtude auto conferida pela própria capacidade de falar algo. Uma grande virtude, de fato...


Essa inconsciência, no entanto, contrasta com a maléfica intencionalidade do psicopático comportamento daqueles líderes que formam e moldam a opinião da claque. São estes os donos da gaiola, os treinadores de papagaios. Sua ação consciente objetiva justamente a morte do significado das palavras e expressões, pois a consequência imediata desse processo de degeneração e esvaziamento da linguagem não é nada menos do que a conquista e o controle (ou no mínimo o direcionamento) do comportamento claque. Em outras, e mais simples, palavras: a papagaiada toda passa a reproduzir o discurso que o líder desejar.


O leitor atento já deve ter compreendido o perigo por trás disso tudo. Mas, é meu dever deixar as coisas explícitas: onde mora, portanto, o tal do perigo mencionado acima? Respondo: o fundamento desse perigo reside no fato de que quando algo não significa nada, pode significar tudo. Ou pior, pode não somente significar qualquer coisa que o artífice desse processo desejar, mas também servir aos seus propósitos, quaisquer que eles sejam.


Trata-se de um processo de demolição de valor, um processo de desconstrução consciente com o fim último de construir algo novo em cima dos escombros. A reputação de algo que já está consolidado no imaginário das massas é instrumentalizada em favor de um intento ideológico executado por meio da substituição dos significados.


Qualquer semelhança do “papagaísmo político” com o processo de relativização da democracia por parte de alguns ideólogos e autocratas é mera coincidência, é claro. Ao leitor fica a reflexão. A percepção mais aguçada do comportamento externo, e muitas vezes do próprio comportamento, é um excelente antídoto contra o veneno ideológico do papagaísmo.