A Ciência da Política
Data de publicação: 08 de dezembro de 2023

Organicismo e ceticismo político: completando o tripé do conservadorismo


Tullio Damin Da Sois

Chefe de Gabinete e Coordenador de Imprensa

Cientista Político


Há exatos 42 dias atrás escrevi nesta coluna sobre como a tradição político-filosófica do conservadorismo pode ser alvo de uma compreensão distorcida, a qual frequentemente resulta em críticas e ataques infundados e inadequados. A fonte do problema é a ignorância quanto ao pilar central que sustenta a tradição conservadora: o tradicionalismo.

A confusão tem nome: o conservantismo, termo cunhado por João Camillo de Oliveira Torres para referir-se à confusão entre a defesa conservadora da tradição, ofuscando seu caráter evolucionário, e uma rasa e irracional ideia de “conservar por conservar”, a defesa de um determinado estado de coisas somente pelo fato de sua existência como tal. Seja em sua forma de um vício de crença próprio do direitismo ou de uma deliberada distorção dos inimigos do conservadorismo, há 42 dias sepultei a controvérsia no artigo intitulado Conservadorismo: tradição e evolução.

Ao realizar tal objetivo, porém, dei-me conta de que apesar de ter fincado com inabalável solidez o pilar central da tradição conservadora, deixei de abordar os outros dois pilares que compõe o núcleo duro comum dentre as diversas expressões do pensamento conservador. Segundo  o filósofo inglês Anthony Quinton, com destaque especial à sua obra A Política da Imperfeição, o organicismo e o ceticismo político completam, ao lado do tradicionalismo, o tripé dos princípios fundamentais que sustentam a visão de mundo conservadora.

Estes dois outros pilares do conservadorismo bebem na fonte filosófica do tradicionalismo, e por isso estão intimamente ligados a ele. Porém, tais pilares são muito mais do que auxiliares do pilar central,  pois por si só o pilar da tradição não seria capaz de sustentar todo o peso do edifício conservador.

Por conseguinte, assim estabeleço o objetivo do presente artigo: finalizar a exposição das fundações do conservadorismo já iniciada nesta coluna por meio da exposição sucinta, mas sólida, dos conceitos de organicismo e de ceticismo político.

Finquemos primeiramente o pilar do organicismo. Este nada mais é do que a forma de entendimento da sociedade e o indivíduo em si. O conservador possui uma visão comunitária, que enfatiza a natureza social dos seres humanos e, portanto, os vínculos sociais que os conectam.

A partir disso, a visão organicista enxerga a sociedade como sendo composta por seres sociais relacionados entre si, em maior ou menor grau, dentro de um determinado contexto cultural, normativo e institucional. Tal contexto é o tecido social que dota tais indivíduos de sua natureza social específica, o que constitui, portanto, uma identidade social própria.

Esse tecido social constitui-se nos vínculos em comum entre os membros de tal sociedade, que os dão sentido social próprio e. Ele é a herança entregue aos vivos pelos esforços de todos aqueles que os precederam. Ele é a tradição daquela sociedade. Ele é o fruto do desenvolvimento histórico da mesma. A sociedade ou comunidade é, portanto, um organismo vivo, interconectado e em constante evolução, produto natural e espontâneo do relacionamento e da cooperação das incontáveis mãos que forjaram aquela determinada tradição.

Logo, o conservador não entende o indivíduo como uma ilha humana, como um ser atomizado perdido em meio a uma multidão, e nem como uma peça de um jogo de tabuleiro ou de uma máquina social. O resultado disso tudo é um tremendo reforço da ideia central conservadora de aversão a projetos políticos que busquem remodelar a sociedade e/ou o próprio ser humano.

Além disso, outra consequência desse entendimento organicista é a abordagem cautelosa quanto a eventuais tentativas de cópia de instituições ou de construções teóricas estrangeiras. Afinal de contas, a experiência estrangeira é, assim como a de qualquer outra sociedade, produto de suas próprias particularidades históricas. Desse modo, antes de se avançar com algum empreendimento deste tipo é fundamentalmente necessário conhecer o todo da própria comunidade, de forma a avaliar as possibilidades de adaptação da realidade externa pretendida.

Por fim, resta-nos erigir o último pilar do edifício conservador: o ceticismo político. Este provavelmente é o princípio fundamental de mais simples entendimento da tradição conservadora, pois é derivado da inquestionável e irrefutável observação da realidade da condição imperfeita e limitada do ser humano.

De forma extremamente objetiva e clara, o ceticismo político típico do conservadorismo avalia o entendimento acerca do conhecimento político que os indivíduos podem e que idealmente devem obter. A política é apenas uma das esferas da vida humana; nenhum de nós é capaz de dedicar-se exclusivamente à busca do conhecimento político. E isso é ainda mais real quando tratamos da vida do cidadão comum: há compromissos e deveres familiares e profissionais a serem observados; há necessidades espirituais a serem supridas; há imprevistos, tragédias e sofrimento a serem enfrentados e superados; há lazer e descanso a serem desfrutados; e a lista poderia seguir-se infinita e desnecessariamente, pois todos sabemos da complexidade da vida humana.

Sendo a sociedade o ambiente no qual seres humanos cujas vidas são complexas se relacionam, naturalmente essa teia de relações adquire um nível de complexidade estratosférico e de uma impossibilidade prática de apreensão em sua totalidade por qualquer coisa viva que não seja o próprio Deus.

Assim sendo, a sociedade é reconhecida como demasiadamente complexa para que nos prestemos a acreditar em simplificações teóricas. O conservador reconhece, então, a primazia da experiência social real, observável e historicamente acumulada frente às especulações teóricas e abstratas desvinculadas desta primeira.

O resultado natural disso para a visão conservadora é a desconfiança – o ceticismo, portanto –  quanto aos conteúdos e discursos puramente abstratos, ideológicos, quanto às simplificações da realidade geradas a partir do racionalismo político descolado da experiência real de vida das pessoas.

E é a partir dessa compreensão das limitações e complexidades da estrutura da realidade que o pensamento conservador trata o conhecimento político basicamente de três formas. Em primeiro lugar, como tendo uma possibilidade de aquisição limitada. Em segundo lugar, como algo que não pode ser exclusivamente teórico e, portanto, necessariamente deve possuir uma dimensão prática. E em terceiro e último lugar, e em linha com o ponto anterior, como algo que está e deve estar fundamental e necessariamente vinculado à vida concreta em sociedade.

Desta forma despeço-me dos caros leitores que possuem a paciência ou o interesse para acompanhar-me, sinceramente esperando que eu tenha sido capaz de colaborar com a formação mental do tripé de pilares que sustentam o edifício conservador em vossas mentes.