A Ciência da Política
Data de publicação: 22 de dezembro de 2023

O espírito do Natal e o espírito do Ocidente

Tullio Damin Da Sois

Chefe de Gabinete e Coordenador de Imprensa

Cientista Político


Foi difícil definir o tema do texto de hoje. É final de ano e, fora a correria natural do período, este é justamente o momento no qual aquela típica letargia do restante do ano no Congresso Nacional é substituída por um ímpeto imparável, um atropelo implacável como uma carga de cavalaria ou uma Blitzkrieg. É a comum tática dos profissionais da política de usar o tempo e a urgência em benefício próprio.

Isso tudo é cansativo, até mesmo para aqueles “viciados” pela política como. Às vezes o sentimento é de esgotamento, de desesperança, de impotência perante a incessante marcha rumo ao abismo. A política por vezes satura a consciência, faz ela pesar como se fosse um megalito. Mas ao mesmo tempo ela continua sendo o instrumento pelo qual podemos evitar desgraças maiores e abrir caminhos para um futuro, ao menos em termos materiais, melhor.

Dessa reflexão inicial podemos extrair algo muito importante: nosso foco coletivo ao tratar da política na grande maioria das vezes está demasiadamente focado no material. Perdidos na avalanche de acontecimentos e fatos políticos e vagando pelo infinito oceano de informações diariamente produzidos, por vezes esquecemo-nos que a esfera material da vida humana é necessária e evidentemente tem a sua importância, mas que aquilo que possui supremacia na hierarquia da existência não se pode tocar com as mãos.

As coisas relacionadas ao espírito e ao intelecto são soberanas. Ideias e crenças não somente têm consequências, mas são as responsáveis por mover não somente indivíduos, mas grupos, sociedades, nações e civilizações inteiras. E não é só por isso que senti a necessidade de não escrever sobre política hoje. É quase Natal, data na qual o mundo cristão celebra o nascimento do Filho de Deus. Portanto, não há nada – mas absolutamente nada mesmo – mais justo e adequado do que escrever, mesmo que brevemente, sobre aquilo que move a nossa Civilização Ocidental: a mensagem de Cristo.

Segundo Carroll Quigley (1979), historiador americano e, em minha opinião, o maior estudioso e analista da história das civilizações que já viveu, nossa civilização foi formada pela mistura de uma série de elementos culturais oriundos de quatro fontes distintas, sendo três delas os pilares fundamentais do edifício ocidental.

De forma muito pontual e limitada, tivemos certa influência sarracena. Esta na verdade mais serviu como uma forma intermediária de transmissão das influências da Civilização Clássica, além de nos herdar alguns itens materiais (objetos) específicos e incidentais. Justamente por isso a fonte sarracena não é considerada como sendo um dos pilares de fato do Ocidente. Passemos a eles, então.

O Ocidente bebeu das fontes da Civilização Clássica, dos tesouros do mundo greco-romano, com influência especial provinda dos campos da filosofia, do direito, do governo e da ciência. Gregos e romanos, portanto, erigiram o primeiro dos três pilares ocidentais.

Bebemos também das fontes do mundo germânico, o qual por muitas vezes é equivocadamente chamado de “bárbaro”. Das sociedades tribais germânicas erigiu-se o segundo pilar do Ocidente, portanto, o qual teve especial influência no que se refere às relações sociais e aos aspectos culturais de ordem mais técnica e material.

Já o terceiro e último pilar fundamental da Civilização Ocidental veio do Oriente, de uma Terra Santa, mais especificamente. O povo judeu, um dos grupos semíticos que compunham a extinta Civilização Canaanita, foi nos legou a última grande fonte civilizatória, presenteando-nos com a mais importante herança, oriunda ela do campo religioso e moral: a fé dos mártires, da misericórdia divina, da Salvação e Redenção. Presentearam-nos com o Cristianismo. 

“Em qualquer sociedade, a cultura não material é a característica mais significativa de toda a sociedade [...]” (QUIGLEY, 1979), pois é ela que possui a capacidade de penetrar e influenciar a todas as demais dimensões culturais. Ela é o motor e o combustível que movem uma sociedade ou civilização. E foi – e ainda é – precisamente a construção ocidental de um sistema religioso, moral e ideológico completamente novo a partir da influência cristã o principal fator pelo qual a Civilização Ocidental tornou-se a mais avançada, mais poderosa e, apesar de todas as suas falhas, a mais humana da história.

A grande razão para tal, portanto, é que a mensagem de Cristo foi assimilada e difundida pelo Ocidente. Tornou-se parte da alma da nossa civilização. A criação do sistema religioso, moral e ideológico foi uma verdadeira revolução que conquistou a alma e a mente dos povos ocidentais – a Revolução Cristã, como diria o psicólogo clínico e pensador canadense Jordan Peterson (2018).

As sociedades escravistas que precederam o Ocidente passaram por uma reorganização hierárquica social a partir da revelação ético-religiosa cristã, atacando o problema da crueldade estrutural até então vigente. Isso não quer dizer que as sociedades cristãs-ocidentais não tivessem seus problemas e não fossem capazes de atos de crueldade. No entanto, foi o Ocidente a civilização capazes de abordar e resolver o problema da crueldade estrutural das antigas sociedades: não somente ao atacar a questão da escravidão, mas também ao abolir os espetáculos sangrentos, os sacrifícios humanos e o infanticídio. Além disso, a Revolução Cristã abordou questões como a igualdade de valor entre o homem e a mulher e a desdivinização da autoridade política por meio da separação entre os poderes temporal e religioso, os reis e a Igreja.

Tudo isso foi possível por conta da criação doutrina cristã pela Igreja, a qual “elevou a alma individual, colocando o escravo e o mestre, o plebeu e o nobre igualmente na mesma base metafísica, considerando-os iguais perante Deus e a lei” (PETERSON, p. 194). O valor transcendental de cada alma humana, portanto, foi estabelecido como pressuposto da lei e da sociedade ocidentais.

Assim, a Civilização Ocidental mudou o foco da interpretação da realidade. A dor e o sofrimento por conta das tragédias e irracionalidades da vida foram reconhecidos, porém foram colocados como combustível que alimenta o dever de cada indivíduo: buscar a melhora do Ser, da existência humana em si, própria e alheia. O foco foi transportado do material e terreno para o espiritual e eterno.

Essa mudança fundamental de foco que o Cristianismo nos trouxe carrega em si uma clara instrução moral ao Homem: escolher a luz ao invés da escuridão. É ao invés de focar a própria existência em amaldiçoar as sombras que a permeiam, optar conscientemente por deixar a luz entrar: mais do que perceber e reconhecer os problemas e limitações da realidade, perceber as possibilidades de ação e solução, assim como a responsabilidade que as acompanha.

Desta forma, a verdadeira natureza da fé cristã é “a percepção de que as trágicas irracionalidades da vida devem ser contrabalançadas por um comprometimento igualmente irracional com a bondade essencial do Ser” (PETERSON, p. 110). É uma declaração da fé existencial: a decisão individual de agir como se a existência fosse justificada pela própria bondade, pela própria retidão de comportamento.

A Civilização Ocidental, então, pôs em seu próprio altar a sabedoria de Cristo que permeia o Novo Testamento, elevando-a ao patamar de seu próprio objetivo. O verdadeiro indivíduo humano passou a ser reconhecido como aquele que é orientado para o Bem e para a Verdade. Aquele que tem controle sobre si mesmo e os impulsos de sua própria natureza e que possui o desejo fundamental de tornar o mundo um lugar melhor – mas que humildemente sabe que para tal é necessário assumir responsabilidades e estar preparado e determinado a sacrificar de si mesmo aquilo que for necessário para a busca do bem maior.

Essa é, nas palavras de Jordan Peterson, a ética culminante do Ocidente: “Mire alto. Ajuste sua mira para a melhoria do Ser. Alinhe a si mesmo, em sua alma, com a Verdade e o Bem Maior. Há uma ordem habitável para estabelecer e uma beleza para ser trazida à existência. Há males a serem superados, sofrimento a ser aliviado e a si mesmo a ser melhorado.” (PETERSON, p. 112)

Essa é, básica e resumidamente, a mensagem de Cristo, transformada na mensagem de uma civilização. Em última instância, esse é o nosso maior tesouro, o nosso maior legado, a nossa maior herança. Essa é a mensagem e a tradição do Ocidente, a nossa mensagem, a nossa tradição.

A verdadeira mensagem de Cristo, condensada pelo Ocidente como sua própria força motriz, hoje encontra-se obscurecida em meio à névoa dos tempos presentes, em meio à sombra gélida do espectro totalitário soberbo e revoltoso contra o Ser e contra o espírito. Porém, esta mesma mensagem continua a habitar a alma de nossa civilização, e o seu resgate, assim como o da própria Civilização Ocidental, depende fundamentalmente de seu resgate.

Que neste Natal celebremos o nascimento do Filho de Deus por meio do reconhecimento de que é nosso dever, com humildade e comprometimento verdadeiros, resgatar a Sua mensagem e a civilização que ela gerou.

Que a mensagem do Filho de Deus seja a luz da chama que nos guiará nesses tempos de crise, confusão e falta de esperança. O espírito do Ocidente depende do espírito do Natal.

Discordo de Nietzsche. Deus não está morto; e nem o Ocidente.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


PETERSON, Jordan B. 12 regras para a vida: um antídoto para o caos. Rio de Janeiro: Alta Books, 2018.

QUIGLEY, Carroll. The Evolution of Civilizations: An Introduction to Historical Analysis. Indianapolis: Liberty Fund, 1979.