A Ciência da Política
Data de publicação: 17 de novembro de 2023

O dia da infâmia

Tullio Damin Da Sois

Chefe de Gabinete e Coordenador de Imprensa

Cientista Político


No primeiro artigo desta coluna, este que vos escreve firmou um compromisso: tentar ajudar o leitor a situar-se mais profunda e claramente no debate público, principalmente por meio das ferramentas disponibilizadas pela Ciência Política e áreas correlatas. Além disso, também foi prometido que não ficaria refém das manchetes e noticiários que inundam diariamente as nossas telas.


Mas hoje abrirei uma exceção – ou quase isso. Voluntariamente me rendo. Mas não a algum jornal ou canal de televisão. Não. Minha rendição será a uma data comemorativa, ao feriado nacional desta semana. O famigerado 15 de Novembro, data na qual se recorda o ocorrido no ano de 1889 nestas terras: a Proclamação da República em nosso Brasil.


Alguns até comemoram o feito, mas a maior parte da população não sente afeto algum pelo feriado – trata-o assim como trata boa parte, se não a maior parte, dos feriados do país: como um dia de folga. Me parece, ao menos, que não há um sentimento generalizado na população de que o regime republicano instaurado em nosso país a partir daquele fatídico dia tenha de fato sido um divisor positivo de águas em nossa história. Esse tipo de sentimento está mais reservado a alguns círculos políticos, militares e burocráticos ideológica e emocionalmente conectados ao conjunto de valores e proposições que o ato evocava.


Enfim, esse orgulho restrito e o majoritariamente indiferente estado de espírito de indiferença ao 15 de Novembro tem explicação. Afinal de contas, ainda somos um país alegre e cordial, abençoado por Deus, lindo e rico por natureza, mas também permeado por favelas e grandes bolsões de pobreza e miséria. E não nos esqueçamos do recheio violento das organizações criminosas ligadas ao tráfico internacional de drogas e pessoas que atormentam a sociedade diuturnamente; e nem da infestação permanente por uma classe política majoritariamente prostituta, parasitária e corrupta; e nem da nossa recente submissão aos ditames da suprema soberba.


A lista poderia seguir, mas aí a leitura se tornaria demasiadamente deprimente – e de forma alguma quero alimentar o sentimento derrotista e desesperançoso de que não vale a pena continuar lutando por um país melhor. Mas, que a verdade (ao menos da minha opinião) seja dita: a Proclamação da República pode não ser a origem de todos os nossos problemas, mas definitivamente é a responsável pelo permanente “estado de arrasto” e instabilidade de nosso querido Brasil.


Foi no 15 de Novembro, pelas mãos de militares do Exército Brasileiro, unidos em propósito a positivistas e republicanos, que um Golpe de Estado Revolucionário autoritariamente decidiu substituir, sob a ameaça do uso da força e da violência, a experiência histórica, social, cultural e política de quase cinco séculos de nossa nação. Foi ali que criou-se uma cultura política autoritária neste país, alimentada pelo constante estado de instabilidade social e política e consumada numa sucessão de golpes e intervenções, sempre e invariavelmente com a participação militar. Uma cultura política que à base de marteladas, desferidas de cima para baixo por elites políticas e militares, infelizmente passou a moldar e condicionar a experiência política, social, econômica e cultural do povo brasileiro.


A derrubada do Império e a instauração da República não foi, nem de longe, uma opção do povo brasileiro, uma vontade legítima sua. O Partido Republicano possuía míseros 2 deputados na Assembleia Nacional, e o movimento republicano não gozava de adesão popular. Como bem descreveu Aristides Lobo, jurista, político e jornalista da época, “O povo assistiu àquilo bestializado, atônito, surpreso, sem conhecer o que significava. Muitos acreditaram seriamente estar vendo uma parada.


A partir daquele momento foi perdida, destruída a própria identidade do povo brasileiro que, de forma similar aos britânicos, tinham na figura do Imperador Dom Pedro II, na instituição da Coroa Brasileira o símbolo unificador da identidade nacional. O Imperador foi destronado e a nação teve sua alma arrancada de seu peito pelo fio da espada. Cortaram-se as raízes de uma árvore que vinha lenta e vagarosamente evoluindo e dando frutos. Demoliram-se os pilares de sustentação da nação.


E como haveria de ser diferente o resultado? O que mais haveria de se esperar de um ato de força cuja pretensão era apagar o passado de uma nação em favor da promessa de construção de um futuro idealizado, romantizado e incerto?


Não, o Brasil Monárquico não era perfeito. Longe disso. Havia o voto censitário, e a chaga da escravidão, para dar o exemplo mais conhecido, se arrastou por tempo demais. Mas foi pelas mãos da Casa Imperial que os principais golpes contra o regime escravista foram dados. Golpes que demoraram? Possivelmente. Mas tendo em vista a força econômica, social e política dos partidários da escravidão, é perfeitamente possível entender a abordagem cautelosa e gradualista do Imperador em avançar com a abolição, tendo em vista o enorme risco de derramamento de sangue brasileiro numa revolta ou guerra civil, justamente como acontecera nos Estados Unidos entre 1861 e 1865. Não é coincidência alguma, portanto, que a Princesa Isabel, ao assinar a Lei Áurea em 13 de maio de 1888, tenha afirmado estar preparada para abolir a escravidão, “custe o que custar”, e nem que as oligarquias escravistas insatisfeitas tenham apoiado o golpe republicano.


O Império do Brasil tinha suas falhas, mas era o resultado orgânico do desenvolvimento de nosso país. Ao contrário de nossos vizinhos latino-americanos, não nos fragmentamos em dezenas de republiquetas instáveis, chão fértil para diversas ditaduras. Após a Independência lançamos as bases de um país que alcançaria a estabilidade político-institucional, manteria a unidade nacional e viria a ser reconhecido e respeitado por todo o globo, inclusive pelas grandes potências da época. O país foi livrando-se aos poucos da escravidão e iniciando um processo de modernização e industrialização autônomo, de desenvolvimento e consolidação de uma tradição de representação política e de um ivejável florescimento cultural.


Tais bases foram firmadas na Constituição de 1824, que estabeleceu uma monarquia constitucional parlamentar, modelo adequado e apropriado às condições locais brasileiras, à experiência histórica de seu povo. Unindo elementos tradicionais, soldados à alma da nação pela ação do tempo, a elementos liberais vanguardistas e avessos ao poder absoluto, a Carta Imperial foi considerada uma das mais avançadas de sua época, sendo elogiada inclusive por grandes figuras de seu tempo, como o escritor e pensador político franco-suíço Benjamin Constant. 


A Monarquia não corria risco natural de morte. Somente uma sedição cínica de uma claque revolucionária poderia derrubar a realeza tropical. E assim, o foi. Com base em mentiras e boatos que fizeram circular uma falsa história de prisão do Marechal Deodoro da Fonseca e do Coronel Benjamin Constant (militar brasileiro homônimo do supracitado europeu), o primeiro foi finalmente convencido a se rebelar.


O Marechal e os revolucionários do Exército prenderam o Visconde de Ouro Preto, Presidente do Conselho de Ministros (o primeiro-ministro brasileiro) e dissolveram o seu gabinete ministerial. Ele queria um golpe rápido, que aproveitasse a insatisfação existente por causa da abolição da escravatura. No entanto, Deodoro voltou para casa, e sequer se falava da queda da Monarquia. Seria necessária mais uma artimanha para que fosse dado o golpe de morte ao Império, pois o Marechal era amigo pessoal de D. Pedro II.


Os revolucionários escreveram uma moção de Proclamação da República, com o Marechal Deodoro como Chefe do Governo Provisório. Mas, como ele recusava-se a assiná-la, a mentira final foi contada: apelando a um dos mais baixos instintos e vícios da alma humana, os revolucionários disseram-lhe que o Imperador havia escolhido Gaspar da Silveira Martins, com quem Deodoro havia disputado e perdido o amor de uma mulher na juventude, para ser o substituto do Visconde de Ouro Preto.


E assim, ao arrepio da legalidade e do sentimento das ruas, a vanguarda revolucionária militar pôs em prática o golpe republicano. Agora finalmente o “velho” Brasil poderia ser descartado e o “novo” Brasil eminentemente moderno poderia ser construído de forma racional, científica e planejada pelos ilustres tecnocratas da República.


Assim foi o 15 de Novembro de 1889, assim foi a Proclamação da República: um corte rápido e violento do vínculo histórico, cultural, político e social do Brasil com suas próprias raízes, com sua própria experiência, com sua própria identidade.


Desde então tivemos 5 constituições que de nada resolveram a questão histórica do desenvolvimento socioeconômico do país, cada qual permitindo um pouco mais o avanço dos tentáculos do poder estatal sobre a população desta Terra de Santa Cruz. Desde então tivemos dois longos regimes de exceção, um proto-fascista e outro militar – além de inúmeras transgressões constitucionais e instabilidades políticas e revolucionárias, é claro.


Desde então o que restou da identidade nacional foi acabar repousando de forma artificial no carnaval e de forma mais natural no futebol. Desde então o respeito e o prestígio internacional foram lentamente desvanecendo-se, restando apenas a simpatia de outros povos pelo nosso povo, alegre, cordial e inventivo – povo querido pelo mundo, o Brasil real e profundo, e não o Brasil “oficial”. 


Por fim, desde então passamos supostamente a ter “orgulho” do verde das matas, do amarelo do ouro e do azul do céu. Que honroso e reconfortante é o ato de sentir orgulho de árvores que não plantamos e de minérios que não criamos. Como é incrível sentir orgulho da posição das estrelas no dia em que uma revolução foi imposta a um povo que nunca por ela clamou. Como é belo agora ter uma bandeira que brada “Ordem e Progresso” de peito estufado, enquanto os artesãos da nova ordem que ela representa autoritária e unilateralmente jogaram na lata de lixo a experiência histórica de seu próprio país.


A Proclamação da República é o nosso dia da infâmia. Nunca comemorei o 15 de Novembro, e hoje tenho certeza absoluta de que nunca irei comemorá-lo. Pelo contrário, meu sentimento é de puro lamento, o qual creio ter sido capaz de deixar tão claro quanto o flash de uma explosão nuclear.


Espero que meu desabafo instigue o leitor a conhecer um pouco mais sobre a sua própria história e, principalmente, a fazer um profundo exame de consciência antes de reivindicar um golpe militar como “solução” para os problemas da nação.


Assim como eu mesmo já o fiz.