A Ciência da Política
Data de publicação: 22 de setembro de 2023

O caráter totalitário do socialismo (parte 2): uma religião política

Tullio Damin Da Sois

Chefe de Gabinete e Coordenador de Imprensa Cientista Político


Antes de começarmos, um lembrete ao leitor contínuo, assim como ao leitor desavisado que caiu aqui de paraquedas: o artigo desta semana é uma continuação direta do do artigo da semana passada. Sua leitura, portanto, é obrigatória para que as seguintes linhas façam sentido. Sigamos, partindo de uma breve e necessária recapitulação.


Acredito que ao final do último artigo desta coluna tenha sido possível passar ao leitor uma ideia geral relativamente clara a respeito de um tema extremamente denso: o fenômeno totalitário. Como expressão ideológica máxima da modernidade, o Comunismo, o Fascismo e o Nazismo podem ser vistos como cabeças de uma mesma besta, cabeças da Hidra do Totalitarismo.


Todas essas ideologias totalitárias comungam de um desejo ardente por revolução: refazer a sociedade, a cultura e até o homem segundo suas próprias concepções de mundo. E foi no caráter psicológico-espiritual desse ideal revolucionário, o que Olavo de Carvalho chama de mentalidade revolucionária, que pudemos encontrar a resposta ao “porquê” da dificuldade de se adentrar num debate honesto e comprometido com a verdade com um socialista (ou com qualquer adepto de uma ideologia totalitária), assim como o porquê de os seduzidos pelo totalitarismo estarem dispostos a fazer qualquer coisa pela causa. Corrupção, terror, perseguição, assassinatos, tudo se justifica pela causa.


A razão disso é a crença na posse de uma suposta verdade, que confere a tais ideólogos e ativistas totalitários a autoridade para refazer o mundo à imagem e semelhança de suas próprias ideologias por meio da ação política. A crença ideológica é a fonte dessa auto atribuída autoridade revolucionária e a segunda peça fundamental do fenômeno totalitário. É imperativo, portanto, entender o “como”: como essa crença se formou, e qual a sua lógica interna.


A filósofa política alemã Hannah Arendt, em seu clássico Origens do Totalitarismo, argumenta que esse tipo de ideologia apresenta-se como sendo “detentora da chave da história, e [...] julga poder apresentar a solução dos ‘enigmas do universo’ e dominar o conhecimento íntimo das leis universais ‘ocultas’, que supostamente regem a natureza e o homem”. Seus adeptos são, portanto, os portadores dos mistérios da existência e do sentido da história, e, por conseguinte, do próprio destino da humanidade.


Como logo veremos, trata-se de uma arrogância intelectual ilimitada que surge para suprir aquele vácuo espiritual aberto pela violenta expulsão moderna do aspecto transcendente inerente ao ser humano.


 Para que se entenda por completo este ponto é fundamental recorrer ao cientista político germano-americano Eric Voegelin, cuja obra (me restrinjo aqui ao livro A Nova Ciência da Política) traz luz ao fenômeno do gnosticismo e seu papel central no desenvolvimento das ideologias revolucionárias-totalitárias modernas. A expressão gnose é de origem grega e significa “conhecimento”, mas na obra de Voegelin é utilizada não no sentido do processo racional em si, mas como a revelação de uma verdade alcançada por meio da intuição, de forma puramente racionalista, capaz de trazer ao "iniciado" alegria e certeza de salvação.


E é essa verdade que, acompanhada da tentativa de construção de um eidos – ou seja, de um sentido – da História resulta no que Voegelin chama de imanentização do eschaton. Explico a expressão. O eschaton é a ideia cristã de que o homem e a Humanidade possuem um destino final, uma realização transcendental, que está além da natureza e das possibilidades do mundo físico – ou seja, sobrenatural. Já aquilo que é imanente é o oposto do transcendente: é aquilo que está contido na natureza de um objeto ou ser, e que fisicamente está no âmbito da experiência possível, no mundo físico.


Assim, imanentizar o eschaton é deturpar um símbolo de fé transcendente como se o mesmo fosse objeto de uma experiência possível na própria história, neste plano de existência. Porém, como bem aponta Voegelin, a existência de um significado da História é uma mera ilusão, pois o seu curso “como um todo não é objeto da experiência; a história não possui um eidos [...] porque seu curso se estende ao futuro desconhecido”.


Ao fim e ao cabo, o cerne da questão encontra-se em um aspecto psicológico-espiritual da natureza humana. Recorro a Hannah Arendt novamente para lançar um primeiro feixe de luz neste ponto. Segundo a filósofa, as ideologias totalitárias carregam em seu ventre uma espécie de “supersentido ideológico”, o qual gera uma devoção obstinada e inflexível no valor salvador da própria crença. A evidente falácia, portanto, é inquestionável aos olhos daqueles seduzidos pelo veneno da serpente totalitária.


Por fim, volto a Voegelin para lançar o último e definitivo feixe de luz sobre a natureza dessa força viciante que se abate sobre o espírito do homem, cujo foco deve estar nos “profetas” totalitários.


A natureza dessa força não pode ser apreendida submetendo-se a estrutura da falácia a uma análise mais profunda. Pelo contrário, a atenção deve concentrar-se no que tais pensadores conseguiram com sua construção falaciosa. Sobre isso não cabem dúvidas. Eles obtiveram uma certeza sobre o significado da história, e seu próprio lugar na história, que de outro modo jamais teriam. Ora, existe sempre uma demanda pelas certezas, a fim de vencer as incertezas e seu séquito de ansiedades.


A perturbadora incerteza à qual Voegelin se refere nada mais é do que o “tênue vínculo da fé, [...] como a substância daquilo que se espera e a demonstração do que não se vê”, algo que “pode-se constituir num manto por demais pesado para os homens que anseiam por uma experiência maciçamente possessiva”. A incerteza é a própria essência do Cristianismo. E, ao “matar” Deus, o radicalismo moderno meramente abriu espaço para a santificação de valores e ideias seculares. Como bem diz a velha máxima: nada se perde, tudo se transforma. Nesse sentido:


[...] a atividade civilizacional transformou-se num trabalho místico de auto-salvação. A força espiritual da alma, que no Cristianismo se devotava à santificação da vida, podia agora ser orientada rumo à criação do paraíso terrestre, criação essa que era mais atraente, mais tangível e, acima de tudo, mais fácil.


Em conclusão, a construção teórica do Comunismo de Karl Marx é fundamentalmente problemática e somente visa a construção de uma espécie de religião política. Essa ficção ideológica é serva de um intento revolucionário capaz de alimentar a fome por certezas absolutas daquelas pessoas que não estão dispostas ou são incapazes de aceitar as incertezas da própria existência.


A atratividade das respostas simplistas e fáceis apresentadas pelos profetas comunistas/socialistas mantém vivo e relativamente oculto da população em geral o espectro vermelho do totalitarismo. A União Soviética caiu há mais de três décadas, mas o movimento comunista está longe, muito longe da derrota.


E, como pode-se perceber, o principal campo de batalha não é econômico, político, material. A batalha é primordialmente espiritual, pelos corações e almas humanas.



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. VOEGELIN, Eric. A Nova Ciência da Política. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1982.