A Ciência da Política
Data de publicação: 05 de abril de 2024

Desmistificando a democracia (parte 2)

Tullio Damin Da Sois

Chefe de Gabinete

Cientista Político


Sejam todos bem-vindos à segunda parte de nossa desmistificação da famigerada democracia.


Na primeira parte desta democrática série (risos) expliquei os motivos pelos quais a tal da democracia é a palavra de uso corrente mais injustiçada. Em suma, ela alcançou o topo deste pódio – ou o fundo deste poço, dependendo do ponto de vista – por conta de seu uso viciadamente massificado, indiscriminado e majoritariamente desprovido de qualquer conexão com o seu significado original.


Lá também sintetizei o contexto da origem e a real natureza da democracia, aquela criada pelos antigos gregos de Atenas. O fiz pois tal tarefa é um pré-requisito obrigatório para qualquer exposição acerca da democracia de nossos dias – principalmente tendo em vista a errônea atribuição de um suposto significado grego de “governo do povo” para tal termo.


Chegou a hora, portanto, de cumprir a promessa central da primeira parte: sintetizar a forma atual de democracia – ou seja, apresentar de forma simples e objetiva uma definição de democracia.


E não se preocupem, não me esqueci da promessa acessória (ou bônus): presentear os meus caros leitores com uma lista de checagem muito útil para uma simples e efetiva conferência de realidade democrática em países reais de nosso tempo.


E já advirto: desta vez levarei ao pé da letra a objetividade do texto. Sem mais delongas, comecemos.


Ao final da primeira parte desta saga democrática apontei o pilar central da democracia original grega: a exigência de leis escritas e de igualdade de direitos dentre os cidadãos atenienses, e não a demagógica e apelativa participação das massas. A partir disso afirmei que aquilo que derivou da democracia grega foi a essência daquilo que se chama de Estado de Direito, um governo baseado e sujeito à lei, e não sujeito aos arbítrios dos homens.

Mas normalmente escutamos tal termo de uma forma democraticamente adjetivada, certo? Lemos e ouvimos falar sobre o tal do Estado Democrático de Direito, cujo significado é nada mais e nada menos do que um Estado de Direito – um estado de leis, portanto – regido por procedimentos legais democráticos. O conjunto desses procedimentos democráticos, por sua vez, é precisamente aquilo que confere a legitimidade, que torna legítima a forma de organização política de nossos dias, o Estado Moderno. Dessa forma, a legitimidade da estrutura de autoridade política contemporânea está subordinada à legalidade (neste caso, uma legalidade democrática) – e a isso se dá o nome de Império da Lei.


Veja bem, caros leitores: acabei de presenteá-los com mais dois bônus. Agradeçam-me depois. Aceito um bom vinho e um bom corte de carne.


Sigamos.


A lógica de funcionamento desse Estado Democrático de Direito é basicamente a seguinte. A chamada soberania – em suma, o conceito de autoridade política superior – de um Estado democrático repousa de forma fragmentada em cada um dos cidadãos dessa unidade política. A soberania está, portanto, na capacidade de autodeterminação política de cada cidadão e, adivinhem só, o voto é fundamental para a democracia justamente por estar especificamente no ato de votar o repositório último deste fragmento individualizado da soberania. O voto é, portanto, onde se encontra a soberania do cidadão.


O ato de votar, por sua vez, implica na delegação do poder de decisão, do próprio fragmento de soberania de cada cidadão para um ou mais representantes de sua escolha – é justamente por isso que se costuma dizer que o legislador é o coração de uma democracia.


Dessa forma, surgiu no arcabouço político do Estado Moderno uma forma de legitimação e coexistência entre o poder coercitivo do Estado (de exercer a força, portanto) e o poder de escolha dos cidadãos. O que ocorre é o seguinte: a democracia coexiste com a capacidade coercitiva do Estado por meio da limitação de seu poder por intermédio das leis, e a legitimidade dessa autoridade política e de sua ação reside, por sua vez, justamente na sua submissão a tais leis, as quais estão submetidas aos procedimentos democráticos.


A democracia é, portanto, um tipo de regime político. Ou seja, um conjunto de regras ou disposições legais que define a forma pela qual os governantes de uma determinada unidade política são escolhidos e a forma pela qual os mesmos exercem os poderes a eles delegados.


Assim sendo, o regime democrático basicamente regula a disputa pelo poder político e o seu respectivo exercício, assim como o relacionamento entre aqueles que detêm o poder político (os governantes e autoridades) e os demais membros da sociedade (os governados).


Em conclusão, e seguindo aquilo que se chama de Teoria Minimalista da Democracia, cumpro com as promessas de simplicidade e objetividade assumidas ao apresentar a seguinte definição da democracia que conhecemos: um regime ou procedimento de estabelecimento de regras e formas de controle da competição política, do exercício do poder político por aqueles que foram escolhidos para tal, e para a transição pacífica de tal poder.


Acharam que eu tinha esquecido? Nunca, caros leitores. Nunca. Por último, mas não dotada de menor importância, apresento-lhes a lista de checagem democrática, em cumprimento da promessa de entrega do bônus que ainda estava pendente.


Quanto mais uma uma unidade política que se apresenta como uma democracia estiver em realidade atendendo a tais requisitos, mais a mesma poderá realmente ser considerada como uma democracia plena e, no caso contrário, mais a mesma poderá ser considerada como uma democracia superficial ou falha – ou até mesmo um regime híbrido, com características que rumam ou até mesmo que já podem ser consideradas autocráticas.

Vamos, enfim, à lista:

1. Império da Lei;

2. Estado de Direito;

3. Separação de Poderes;

4. Igualdade perante a lei (todos os indivíduos possuem os mesmos direitos, pois a lei

não os distingue e nem os trata de forma diferente de acordo com alguma característica específica);

 5. Proteção dos direitos individuais (como a vida, a liberdade e a propriedade, por exemplo);

6. Eleições regulares e livres;

7. Transição pacífica do poder;

8. Participação cidadã (cada indivíduo possui o direito de participar do processo

decisório da comunidade política);

9. Pluralismo político (arena política aberta para a participação na competição política

pela representação por parte das diferentes correntes políticas);

10. Existência de uma sociedade civil (esfera das organizações sociais formadas de forma

voluntária pelos indivíduos, e não pela estruturação por intermédio da esfera estatal,

do aparelho de Estado);

11. Protagonismo do Parlamento (mediador entre a autoridade política e os cidadãos).


Possíveis julgamentos ficam a critério de vocês, meus caros leitores.


Até a próxima.