A Ciência da Política
Data de publicação: 22 de março de 2024

Desmistificando a democracia (parte 1)

Tullio Damin Da Sois

Chefe de Gabinete

Cientista Político


O último texto deste que vos escreve tratou de um tal de “papagaísmo”. Em suma, cunhei tal nomenclatura em referência àquele fenômeno pelo qual nós, seres humanos, temos uma certa tendência a repetir determinadas palavras, frases e expressões pelo simples fato de as mesmas possuírem uma carga simbólica de ressonância positiva, tanto para aqueles que as proferem quanto para aqueles que as escutam, despertando um sentimento virtuoso em ambas as partes.


Hoje pretendo abordar de forma curta, objetiva e didática um dos maiores exemplos de tal “arte”, se não o maior deles. Obviamente refiro-me à “democracia” – a qual, juntamente com as suas derivações, tais como “democrático(a)”, possui uma aura praticamente incontestável na esfera das discussões públicas.


O poder que a palavra democracia tem hoje em dia é tamanho que chegamos ao ponto no qual o mero fato de uma pessoa ser capaz de proferi-la já a coloca automaticamente numa posição percebida em geral pelos demais como moralmente vantajosa. A carga simbólica inerente à palavra confere a ela tamanha influência que a sua simples inserção juntamente de alguma outra palavra ou expressão possui a capacidade de adjetivá-las com um sentido infinitamente carregado de superioridade moral.


Fale qualquer bobagem, caro leitor, mas adjetive tal bobajada com “democracia” ou “democrático(a)” e observe a mágica acontecer: a contestação a vossa fala será uma raridade.


Este vício da uma repetição abusiva e desenfreada, tão característico do “papagaísmo político” oculta, no entanto, não somente o esvaziamento das palavras de seus próprios significados originais – seu resultado mais danoso, apesar de menos facilmente perceptível –, mas também a burrice, a imbecilidade, a ignorância dos próprios “papagaios políticos”. E a regra é ampla, geral, universal: atinge a esquerda, a direita, o centro, os “isentões”, e qualquer ser humano cujo comprometimento intelectual não repouse na lealdade à Verdade.


A democracia é, portanto, e em minha humilde opinião, o exemplo mais característico do “papagaísmo político” por três fatores: (I) o alcance tão amplamente disseminado, massificado até, de seu uso; (II) a profundidade e a importância do debate em torno da mesma e do seu significado original ; e (III) o nível abissal de esvaziamento e banalização de tal importância e significado decorrente de seu uso “papagaístico”, viciadamente indiscriminado.


Proponho o seguinte desafio. Faça, a si mesmo e a alguém, principalmente se você ou esse alguém já tenham proferido tal palavra, a seguinte pergunta: o que é democracia? Mais especificamente ainda: qual é a definição de democracia? Aposto que a resposta será, em

Tullio Damin Da Sois Chefe de Gabinete Cientista Político geral, uma mágica manifestação de silêncio ou da mais pura arte da enrolação. Ah, já estava me esquecendo da auto enganadora, clássica e mitológica resposta do “governo do povo”, cuja ocorrência é frequente demais para o meu gosto.


Uma resposta humilde e sincera na qual o indivíduo admita a sua incapacidade de definir “democracia” de uma forma verossímil e, portanto, minimamente adequada e aceitável, será uma raridade – infelizmente. Em meu caso, posso afirmar que somente agora, aos 30, quase 31 anos de idade é que sinto-me seguramente capaz de responder a tal pergunta atendendo satisfatoriamente a tais critérios.


Assim sendo, e sem mais delongas, a ideia do presente texto é, a partir dessa reflexão, compartilhar com meus caros leitores uma forma simples e objetiva de definição de “democracia”, a qual permitirá uma pequena, mas importante, qualificação de sua participação no debate público.


No entanto, para que o presente texto não se torne demasiado longo e cansativo, dividirei esta democrática exposição em duas partes. Hoje somente sintetizarei a origem e a real natureza da democracia, a democracia antiga dos gregos atenienses. Já em nosso próximo encontro sintetizarei a democracia de nossos dias, cumprindo com as promessas acima feitas e até mesmo presenteando os leitores com uma muitíssimo útil lista de checagem para uma simples, mas efetiva, conferência de realidade democrática em países reais.


Apertem os cintos para uma breve mas muito esclarecedora viagem no tempo e no espaço. Vamos rodar o relógio do tempo 2.500 anos para atrás e nos dirigir às terras montanhosas e banhadas pelo Mar Egeu da Península Ática.

Atenas Clássica, aqui vamos nós.


A democracia, como todos já estão carecas de saber, nasceu na Grécia Antiga, mais especificamente na cidade-estado (a forma grega de organização social e política, a chamada pólis) de Atenas. O seu surgimento, porém, não veio do nada. Bem pelo contrário, ela foi um produto da série de transformações sociais, tecnológicas, intelectuais e políticas que ocorreram no mundo grego no último milênio antes de Cristo.


O principal resultado de todo esse processo de mudanças foi a filosofia grega, por meio da qual a razão humana passou a transcender a mitologia, desvinculando-se dela e tratando de refletir e discutir sobre a ordem social e política humana.


A grande conexão com a democracia é que as pólis gregas, assim como a filosofia, valorizavam imensamente o poder da palavra. Em outras palavras, a forma pela qual se tomavam as decisões nessas unidades políticas gregas era a partir da reflexão, discussão, convencimento e persuasão dentre os seus cidadãos.


Concomitantemente ao desenvolvimento e consolidação das pólis gregas correu o processo de desenvolvimento da filosofia, por meio do qual evoluiu e consolidou-se o ideal de justiça como o mais alto ideal a ser buscado pelos gregos. Tal ideal, vale notar, tinha um sentido de igualdade para os gregos: a igualdade dos gregos enquanto os gregos, de cidadãos enquanto cidadãos – não o igualitarismo irrestrito e total com o qual estamos acostumados hoje em dia.


Enfim, foi da união desse contexto da pólis com a ascensão do ideal filosófico de justiça que nasceu a percepção de que a tal da justiça somente poderia ser garantida por meio de uma lei expressa e não sujeita aos arbítrios dos homens. Uma lei isonômica. Uma lei igual para todos.


 Assim, a democracia original grega teve como pilar central a exigência de leis escritas e de igualdade de direitos, e não da participação das massas – o famigerado e equivocado “governo do povo”. O que derivou da democracia grega foi, portanto, o ESTADO DE DIREITO, um governo de leis oposto ao arbítrio dos homens.


Objetivo número um cumprido: está destruída a demagogia que distorce a nossa compreensão acerca da democracia ateniense. Acompanhe a presente coluna daqui a duas semanas e cumpriremos o segundo objetivo juntos: esclarecer e conceituar com adequação e realismo a democracia de nossos dias.


Até lá.