A Ciência da Política
Data de publicação: 27 de outubro de 2023

Conservadorismo: tradição e evolução

Tullio Damin Da Sois

Chefe de Gabinete e Coordenador de Imprensa

Cientista Político


Algumas semanas atrás escrevi nesta coluna a respeito do tema do conservadorismo. Após um relato pessoal reflexivo sobre a minha “migração” de campo ideológico, adentrei no assunto principal: os vícios comportamentais e ideológicos de quem acha que é conservador, mas que na verdade não passa do equivalente político-ideológico do esquerdista – o direitista, evidentemente.


Longe de buscar me colocar numa posição de julgamento de quem merece ou não ser considerado um conservador, meu intuito com aquele artigo foi dar ferramentas de autorreflexão aos leitores. Através da avaliação e exclusão daquelas características que frequentemente são confundidas com partes integrantes do pensamento conservador, meramente busquei instigar uma reflexão sobre as crenças e comportamentos, pessoais ou alheios. Algo que seguidamente busco fazer, diga-se de passagem, pois o nosso compromisso deve ser com a busca da verdade, e não com alguma forma de satisfação pessoal ou de outrem.


Porém, o bombardeio midiático, político e ideológico contra o conservadorismo é incessante. Não cessa e apela a tamanho simplismo ao ponto de me deixar muito incomodado e com um sentimento de necessidade de abordar com maior profundidade justamente um dos aspectos que abordei no artigo “Como não ser um conservador”. Refiro-me ao conservantismo, que é tanto um vício de crença próprio do direitismo quanto uma recorrente forma de bombardeio ao apreço conservador pela tradição.


Desta vez o que aqui proponho possui um duplo intento. Busco tanto dar maiores subsídios para confrontar as típicas críticas contra o tradicionalismo conservador, quanto dar início a uma exposição mais prescritiva do conservadorismo – daquilo que ele realmente é, ou que ao menos pretende que seus adeptos sejam.


Partamos de uma breve, mas necessária, rememoração de dois conceitos: conservantismo e conservadorismo.


O conservantismo é basicamente um espantalho do conservadorismo. A partir de um entendimento errado – proposital ou não, vindo tanto da direita como da esquerda política – acerca do apreço conservador pela tradição, forma-se uma caricatura que muito frequentemente é utilizada de forma pejorativa pelos críticos e inimigos do conservadorismo para denegri-lo e atacá-lo. Em suma, o conservantismo é a postura e a convicção imobilista  de quem acredita na conservação pela própria conservação. É uma visão estática e acrítica dos costumes, valores, tradições e instituições que sobreviveram ao teste do tempo. O conservadorismo, como veremos mais adiante, está muito longe de ser estático. Ele é evolucionário. E sim, o paralelo aqui é com o termo científico, o qual pode e deve ser traçado, e assim o será.


Já quanto ao conservadorismo, o conceito que utilizei para a sua definição foi o de uma tradição político-filosófica que pode ser entendida como uma disposição, postura ou mentalidade contrária a projetos políticos utópicos, ideológicos, dogmáticos e arbitrários de remodelagem da sociedade e/ou da própria humanidade.


No entanto, o conservadorismo não é uma tradição de expressão única e invariável. Ou seja, ele não é uma só coisa em todas épocas e lugares nos quais sua expressão pode ser identificada. Ele é uma tradição com diversas expressões, cada qual possuindo suas próprias particularidades oriundas de suas próprias fontes históricas, culturais e tradicionais (costumes) provenientes de seus respectivos países ou regiões de origem.


Porém, a observação de que o conservadorismo pode ser considerado como uma tradição com certa diversidade de expressões não pode ofuscar o inegável fato de que existe algo que une a todas essas “tradições dentro da tradição”. Caso contrário, evidentemente não haveria possibilidade alguma do reconhecimento da própria existência de uma tradição que pudesse ser chamada de conservadora. Há, por conseguinte, um núcleo duro, sólido e comum de pensamento presente em todas as diferentes expressões conservadoras – um núcleo que representa a unidade dentro da diversidade. E este núcleo é composto por aquilo que podemos considerar como os elementos essenciais da tradição conservadora.


Segundo o filósofo inglês Anthony Quinton, especialmente em sua obra The Politics of Imperfection (A Política da Imperfeição), são três os princípios fundamentais que sustentam a visão de mundo conservadora: o tradicionalismo, o organicismo e o ceticismo político. E é justamente a ignorância acerca do primeiro destes três princípios a responsável pela confusão e distorção conservantista.


Mencionei há alguns parágrafos atrás que traçaria um paralelo científico quanto ao caráter evolucionário do conservadorismo. Esclareço que o objetivo de tal proposta é a sua utilização como um método para corroborar o argumento tradicionalista conservador. Primeiro farei uma breve síntese do princípio do tradicionalismo e em seguida traçarei o proposto paralelo científico.


O tradicionalismo é o apreço respeitoso pelos costumes, valores e instituições estabelecidos. Estes não são vistos simplesmente como algo dado, mas sim como um patrimônio herdado, construído a muitas mãos e sedimentado pelos testes do tempo. É o elo do presente com o passado que, como o cientista político brasileiro Bruno Garschagen afirma, constitui-se na experiência que “contextualiza a nossa existência e nos desperta para o sentido de dever e responsabilidade que temos como guardiões da tradição positiva que nos foi legada.” (p. 47)


E é esse julgamento de valor, essa tradição positiva que traz à tona o caráter dinâmico e evolucionário da ideia conservadora de tradição. Esse dever de guarda impõe também o dever da crítica e da busca do aperfeiçoamento: um olhar reformista da tradição. Além da valorização do patrimônio herdado, o mesmo deve ser constantemente avaliado e aprimorado, buscando manter a sua essência ao mesmo passo em que se reforma aquilo que for possível e se descarta aquilo que for necessário. Em suma, e recorrendo novamente a Garschagen, a ideia conservadora de tradição “é a defesa de uma ordem social historicamente dinâmica que incorpora a sabedoria prática acumulada da comunidade, sendo um produto coletivo, fruto de inúmeros ajustes e modificações” (p. 45).


Finalmente leitor, chegou a hora do aguardado paralelo científico. Minha compreensão acerca do tradicionalismo tornou-se (creio e espero eu) plena a partir da leitura do primeiro capítulo do livro 12 Regras para a Vida, do psicólogo clínico e pensador canadense Jordan Peterson. Ao ler sua argumentação acerca da natureza (essência) da natureza, automática e naturalmente pude estabelecer uma conexão, um paralelo, com o princípio conservador em análise. Vejamos as palavras-chave (extraídas a meu critério da linha de raciocínio de Peterson) a partir das quais buscarei formular um adequado e compreensivo entendimento do princípio conservador do tradicionalismo. São elas: evolução, natureza, ordem e permanência. Ao raciocínio, enfim.


A evolução é conservadora, começa Peterson. Ao primeiro olhar, essa afirmação é politicamente orientada. Pelo menos aos olhos daqueles que veem fascismo embaixo de toda e qualquer pedra que chutam na calçada. Mas o ponto é científico mesmo: tudo aquilo que evolui necessariamente o faz a partir daquilo que já existe ou já foi produzido. É tão simples quanto um 2 + 2, mas para alguns, somente desenhando mesmo. Enfim, além do fato de que o processo evolucionário biológico é extremamente lento, essa afirmação quer dizer que  características antigas podem ser alteradas e novas características podem ser acrescentadas, mas a maior parte das características permanece inalterada.


E como ocorrem essas alterações? Em suma, por meio do famosíssimo processo chamado de seleção natural, que é a escolha entre a diversidade de indivíduos dentro de uma mesma espécie ao longo do tempo. A reorganização de seus genes e as mutações aleatórias que ocorrem dentre eles acabam por gerar as variações de cada espécie, e aquelas que estiverem mais bem adaptadas serão aquelas com maior chance de sobrevivência. Ao fim e ao cabo, é uma questão de perecimento ou de permanência (guarde esta última palavra com carinho).


A adaptabilidade dos indivíduos ao ambiente, portanto, é fundamental para a sua sobrevivência e perpetuação. Mas o que é esse ambiente condiciona a vida e que a seleciona? Apresento-lhes a natureza: o ambiente ao qual os seres vivos devem se adaptar, e segundo o qual evoluem. É o ambiente que escolhe, que seleciona quem e o quê vive e morre. E o que é selecionado pela natureza é justamente a aptidão, cujo conceito pode ser resumido na qualidade de um ser vivo resultante no grau de “encaixe” entre seus próprios atributos e a demandas do ambiente.

Mas há um ponto importantíssimo a ser ressaltado, e que muda todo o jogo: a natureza não é estática. A qualidade de aptidão de um indivíduo também varia de acordo com as transformações do próprio ambiente no qual ele está inserido. A natureza também se transforma, e com isso também transforma as características que tornam um indivíduo bem-sucedido (apto, portanto) em sobreviver e se reproduzir. Como dizemos na linguagem popular, é uma questão de dançar conforme a música.

Assim sendo, a natureza não é eterna e imutável, o que destrói aquela ideia cientificista da era vitoriana do progresso evolucionário, linear em essência, sempre rumando em direção ao progressivo melhoramento, cada vez mais próximo de uma suposta total aptidão – o suposto “destino” da seleção natural. A natureza, portanto, não é uma coisa ou outra. Ela é ambas. Seu caráter é duplo: ela é tanto estática quanto dinâmica. Jordan Peterson traça um paralelo impecável dessa característica ao citar os princípios taoístas do Ser (da Realidade em si, segundo o Taoísmo). A ideia de Yin e Yang, segundo ele, captura perfeitamente a natureza da natureza: são princípios opostos, mas complementares e intercambiáveis, eternamente justapostos. Isso significa, como bem resume Peterson, que “Não há nada tão certo que não possa se transformar… Da mesma forma, não há nada tão mutável que não possa ser fixado.” (p. 13)

Porém, como bem sabemos, a natureza possui um elevadíssimo grau de complexidade e magnitude – e que muitas vezes estão além de nossa compreensão. A natureza é composta tanto de coisas pequenas como de coisas grandiosas, e não transforma-se de forma uníssona. Pequenos arbustos e formas de vegetação são encontrados ao longo de enormes cadeias de montanhas. Pode chover pela manhã, e à tarde o céu pode já estar limpo e ensolarado, mas se você está no verão, sabe que vai passar um bocado de calor por alguns meses. Folhas secam e florescem com frequência e árvores dão frutos frequentemente, mas estas últimas vivem por dezenas, centenas ou até milhares de anos. Florestas inteiras, então, nem se fala.


Há, portanto, diferentes velocidades de transformação para diferentes coisas, e são justamente essas diferenças que nos  revelam e permitem que observemos aquilo que é mais mutável e aquilo que é menos mutável. Esta última característica, de uma maior imutabilidade portanto, representa aquilo que permanece por mais tempo, e é caracterizado por Peterson como a “ordem mais real”. Mais real, portanto, por ser mais permanente.


Neste momento o leitor atento se recordará de meu pedido, feito há alguns parágrafos atrás: guardar com carinho a palavra “permanência”. Sua extrema importância se revela por conta de sua íntima conexão com os conceitos de natureza: tanto no sentido do ambiente que condiciona e seleciona e no qual estamos inseridos, quanto no sentido mais filosófico, da essência das coisas. Como bem exemplifica Peterson, quanto mais tempo algo perdura, mais aquilo é natural, porque “[...] a ‘natureza’ é ‘aquilo que seleciona’, e quanto mais tempo uma característica tem existido, mais tempo teve para ser selecionada – e para moldar a vida.” (p. 15)


Assim sendo, o que importa é a permanência, pois é ela que afirma a aptidão de sobrevivência perante os testes do tempo e do ambiente. E as características que permanecem e perduram, como bem aponta o autor, não necessariamente se restringem ao universo da biologia. Elas podem ser físicas e biológicas, mas também podem ser sociais e culturais.


Creio que, após toda essa exposição, não reste dúvida alguma: o conservadorismo é evolucionário. O apreço e o respeito conservador pelas tradições não vêm do nada. Pelo contrário, eles vêm da observação e do reconhecimento do pensamento conservador acerca da realidade em si, da natureza das coisas, da essência da realidade. É a qualidade da permanência que revela com clareza solar a importância do patrimônio valorativo, cultural e institucional herdado por nós.

É dever de todo aquele que se chama de consevador, ou que pretende sê-lo, buscar inspiração no caráter natural e evolucionário da realidade como forma de tratar tal patrimônio. É necessário não somente contrapor mudanças revolucionárias, abruptas e destrutivas, mas também garantir a permanência daquilo que foi construído a tantas mãos e por tanto tempo. A fim de preservar e garantir a permanência do patrimônio herdado, é dever de todo conservador manter os pés firmes no coração da tradição, na sua essência, ao passo em que avalia a mesma criticamente, sempre em busca de seu aprimoramento e adaptação aos testes do tempo e do dinamismo histórico.


O conservadorismo finca suas fundações na realidade observável e constatável de como as coisas são. É simples assim. Essa é uma lição que deve ser pessoal a todos os conservadores e pretensos conservadores, e só assim, internalizando para depois externalizá-la, seremos capazes de defender apropriadamente nossa posição.




REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

GARSCHAGEN, Bruno. O mínimo sobre conservadorismo. Campinas: O Mínimo, 2023.

PETERSON, Jordan B. 12 regras para a vida: um antídoto para o caos. Rio de Janeiro: Alta Books, 2018.