Congelados e condenados
Tullio Damin Da Sois
Chefe de Gabinete e Coordenador de Imprensa Cientista Político
Há algumas perguntas muitíssimo comuns, que quase invariavelmente me são feitas assim que encontro parentes, amigos e conhecidos de minha terra natal: “como estão as coisas em Brasília? Como está o trabalho? É tão ruim assim lá dentro como parece aqui de fora?”
Como sou uma pessoa mais objetiva e que não gosta de ficar enrolando ou mentindo, tento responder com a maior simplicidade e concisão possível, meio que condensando as respostas em uma só: “fazemos o que conseguimos e podemos, e não é lá tanta coisa quanto imaginávamos. E não, lá dentro não é tão ruim como se vê aqui fora; é pior.”
É pior pois vemos as entranhas. Pois aquilo que aprendi em anos da faculdade de Ciência Política e de estudos independentes não somente se concretiza, mas ganha contornos mais nítidos e detalhes mais profundos. A coisa materializa-se diante de nossos olhos. Vemos as entranhas do sistema – mas não todas, graças a Deus, pois não sei se meu estômago aguentaria.
Hoje quero dissertar brevemente sobre uma das categorias de fatos que mais bem caracteriza esses “momentos de realidade” na capital: as muito frequentes peregrinações de Prefeitos e Vereadores dos mais diversos e longínquos rincões do Rio Grande do Sul ao nosso gabinete.
Assim como no ano passado, são diversos os momentos nos quais essas autoridades políticas locais viajam a Brasília e lotam os corredores do Congresso Nacional, batendo de porta em porta nos gabinetes de deputados e senadores de seus respectivos estados, assim como de ministros, secretários, dentre outros representantes de órgãos públicos federais. O pós-Carnaval deste ano de 2024 foi justamente um desses momentos. E um dos mais movimentados, diga-se de passagem.
Os atendimentos no gabinete foram praticamente incessantes, ocorrendo inclusive nos horários de almoço. Houve situação na qual um dos integrantes da equipe estava atendendo uma comitiva dentro da sala do deputado (que estava em Plenário), enquanto outros de nós atendíamos a outra comitiva junto de nossas mesas de trabalho. Num dos dias dessa semana saí até com dor de garganta de tanto falar com nossas visitas.
Enfim, o motivo esmagadoramente majoritário das peregrinações é simples: dinheiro. São pilhas e pilhas de ofícios solicitando recursos por meio de emendas parlamentares para os mais diversos fins imagináveis: desde o custeio de hospitais ao custeio de programas de educação ou de incentivo à agricultura familiar; desde a pavimentação de estradas até à reforma de prédios públicos ou à construção de novos. A lista é infindável e extremamente variada. O que não varia, porém, é a necessidade, muitas vezes urgente, por recursos para fechar as contas de algum hospital filantrópico, de algum programa ou construção governamental, ou até da própria Prefeitura.
Esses “momentos de realidade” com os quais a política nacional frequentemente nos presenteia constituem o retrato da realidade brasileira – um retrato de dependência. Poder e recursos estão concentrados em Brasília. A estrutura administrativa de nossa Nova República inaugurada em 1988 não reverteu o intenso e histórico processo de centralização. Até tentou, mesmo que mal e porcamente – e muitas vezes sem convicção. Avanços mesmo foram poucos.
E aí, quando passamos pela dinastia do Partido dos Trabalhadores, a coisa complicou. A nova estrutura falhou, por óbvio.
Muitas competências antes atribuídas às esferas federal e estadual passaram à esfera municipal. Porém, a situação tributária-fiscal não acompanhou adequadamente essa mudança. É certo que a Constituição Federal de 1988 gradualmente aprofundou a descentralização fiscal, resultando numa maior participação dos estados e municípios nas receitas do Estado brasileiro. No entanto, isso não foi suficiente para fazer frente aos encargos assumidos pelos níveis políticos subnacionais, principalmente pelos municípios.
Além do mais, a situação foi agravada por diversos fatores, dentre eles o fato de que a maioria dos municípios brasileiros não é economicamente capaz de sustentar seus próprios encargos, e de que a legislação, já permissiva ao desmembramento de municípios, por não ser suficientemente eficiente na promoção da cooperação intermunicipal, e pelo fato de que cada novo município tem direito a uma determinada parcela das receitas tributárias, acabou por incentivar a multiplicação de municípios pelo país – assim multiplicando as estruturas administrativas e, portanto, os custos da máquina pública brasileira.
De forma ilustrativa a isso, as pesquisas realizadas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) acerca das atividades econômicas predominantes nos 5.568 municípios do país demonstram que a parcela daquelas cidades cuja atividade econômica predominante é a própria administração pública. Segundo os dados da última pesquisa, 2.409 municípios, ou 43,26% do total, que atualmente encontram-se nessa situação.
Como bem sabemos, assim como 2 + 2 são 4, o setor público nunca foi, não é e nunca será grátis. Tudo o que o setor público faz, mesmo nos casos que milagrosamente consiga gerar algum valor ao país, ele o faz por meio de recursos que são inicialmente arrecadados junto ao setor privado, o verdadeiro motor econômico de qualquer economia, a verdadeira fonte da geração de valor em qualquer sociedade.
Assim sendo, é a criação de riquezas realizada pelo setor privado dessas cidades que sustenta as suas burocracias. Mas aí vem mais um problema: cerca de um pouco mais de um terço dos municípios brasileiros não geram valor e, portanto, não arrecadam recursos suficientes sequer para pagar os salários de suas Prefeituras e estruturas administrativas públicas. Segundo alguns dos dados mais recentes, quase a metade dos municípios brasileiros, 2.698, mais precisamente, tem 90% ou mais de suas receitas correntes dependentes de repasses da União, dos Estados e de outras instituições públicas.
O caos tributário do país foi responsável pelo agravamento desse quadro. Os poucos ganhos obtidos, principalmente pelos municípios, com a nova ordem constitucional de 1988 foram gradativamente sendo retirados dos mesmos devido a um processo de mudança do foco de fiscalização da arrecadação tributária da União. Ao longo do tempo, o foco tributário da esfera federal de governo no Brasil deixou de ser os impostos rateados com os outros entes federados e passou às contribuições (COFINS, CPMF, entre outros) – as quais não possuem previsão constitucional de rateio com os outros entes federados.
Assim, na prática o bolo tributário aumentou, mas o retorno das transferências constitucionais aos níveis subnacionais de governo foi prejudicado, resultando na concentração dos recursos do Estado brasileiro na esfera federal. O que significa, em última instância, que houve um processo de concentração de poder no ente central do Estado brasileiro.
Portanto, leis e regramentos administrativos e tributários ineficientes geraram incentivos perversos e consolidaram um verdadeiro e lamentável estado de “mendigagem institucional” no país.
Repito: as peregrinações de prefeitos, vereadores e entidades dependentes de recursos públicos à Brasília são o retrato da disparidade de poder no país: a dependência de uns, espalhados por todo o território nacional, perante as bondades de outros, concentrados na Praça dos Três Poderes e na Esplanada dos Ministérios.
Somos um país muitíssimo mal organizado, caracterizado por uma fragmentação político-administrativa que coloca o país de joelhos a um aparato de Estado extremamente centralizador de recursos e de poder. O retrato dessa dependência é o parasitismo do setor público em relação ao setor privado nacional, o qual praticamente mantém o país num quase eterno passo de caranguejo, andando de lado a lado, e de vez em quando permitindo pequenos voos de galinha.
O peso paralisador do parasita público expressa a tendência expansiva da esfera pública por todo o território Seja pela expansão do governo central e da máquina pública nos principais centros administrativos, seja pela criação de pequenas mas custosas estruturas político-administrativas nos mais profundos rincões do país, o resultado é o congelamento da Nação.
Como muito bem notou o célebre Raymundo Faoro esse fenômeno é o congelamento do estamento burocrático – do feixe de cargos da burocracia estatal que se faz presente em todo e qualquer canto deste país. Conforme elites locais ao longo da história brasileira perdiam relevância, estas buscavam nas diferentes esferas do poder político estabelecer estruturas burocráticas que lhes permitissem sobreviver às oscilações dos ciclos econômicos e manter seu status social e econômico privilegiado.
Essas elites buscavam estabilidade, alcançada sempre por meio da mesma fórmula expansiva do Estado. A busca por estabilidade por parte de elites políticas locais e regionais levou à fragmentação político-administrativa que gerou inúmeros municípios financeiramente insustentáveis, agravando ainda mais os problemas estruturais brasileiros.
Os benefícios dessa estabilidade são concentrados, mas seus (altos) custos são difusos. Ela serviu às elites locais e regionais muito bem, estabelecendo preservando condições socioeconômicas privilegiadas. Porém, ao mesmo tempo ela congelou tais localidades no tempo.
O resultado histórico é que praticamente metade do país encontra-se congelada, rígida e imóvel tal qual uma geleira na Antártida, presa ao peso de sua própria máquina pública. E para sustentá-la, aqueles que dependem, por bem ou por mal, dos recursos concentrados em Brasília são obrigados a frequentemente peregrinar em busca do sustento de suas prefeituras, câmaras municipais ou entidades.
Com a estrutura constitucional-legal que atualmente temos, estamos congelados numa situação de pobreza e desigualdade e condenados à mediocridade. Essa é a triste realidade que se encontra por trás das peregrinações que vai e vem agitam o dia-a-dia de um gabinete parlamentar em Brasília.