A Ciência da Política
Data de publicação: 29 de setembro de 2023

Como não ser um conservador

Tullio Damin Da Sois

Chefe de Gabinete e Coordenador de Imprensa

Cientista Político


O intuito do artigo desta semana é reflexivo. Auto reflexivo, melhor dizendo. Faz parte de uma jornada pessoal de autoconhecimento pela qual passei e ainda passo, e pela qual creio eu que muitos daqueles que se dizem do campo político da “direita” também passaram ou passam, ou deveriam passar.


Eu, assim como muitos que hoje se colocam como conservadores ou liberais, já tive minha fase “rebelde”, identificada com a esquerda política – assim como o próprio Olavo de Carvalho já a teve. E, assim como ele, creio que ter passado por essa experiência tenha sido de suma importância para uma compreensão mais aprofundada do fenômeno ideológico. Digo isso por um simples fato: a necessidade de se olhar no espelho.


Minha postura “esquerdista” da época da juventude resultou basicamente da somatória dos seguintes fatores: (I) minha personalidade mais ativa, (II) meu profundo gosto por História e (III) minha exposição quase que exclusiva a professores e conteúdos sutilmente orientados à esquerda. A virada em 180° em direção à dita direita política se deu por uma mistura de provocação de meus pais e amigos próximos, da exposição na faculdade de Ciência Política a conteúdos e professores com orientações políticas diversas daquilo ao qual eu havia sido exposto até então e do meu esforço de autocrítica – olhar-me no espelho, em outras palavras.


O confronto de informações e ideias alcançado por meio da faculdade e por conta própria, aliado ao meu comprometimento pessoal em compreender a realidade, mesmo que isso significasse o psicologicamente incômodo e difícil confronto às minhas próprias “crenças estabelecidas” produziu resultado rapidamente. Meu ideário político havia encontrado um novo norte, rumo às tradições fundantes de nossa civilização Ocidental: em suma, Grécia, Roma e Cristo. A partir daí, sem a menor sombra de dúvidas, deixei minha condição política infantil e rumei à maturidade – e não somente política.


Esse relato pessoal pode até ter sido chato, mas possui extrema importância para o desenvolvimento do título deste artigo. Meu processo de autocrítica trouxe à tona uma condição imprudente, emotiva, até irracional que caracterizava o meu comportamento político até então. Eu não era um comunista “raiz”, conhecedor dos pilares e das sutilezas da ideologia comunista. Eu agia e opinava conforme sentimentos e reações, frases de efeito, chavões, cacoetes ideológicos e palavras muitas vezes desprovidas de seu significado real. É essa diferença entre um pensamento articulado, teoricamente consistente e com capacidade propositiva, por um lado, e essa postura infantil, desarticulada, reativa e desprovida de real substância, por outro, que me fez perceber a diferença entre um comunista e um esquerdista.


Como não descartei o uso do espelho da minha vida, eu não permitiria tornar-me o exato oposto daquela condição psicológico-política pessoal que eu havia superado, afinal de contas, a natureza humana é imutável, e pau que dá em Chico também dá em Francisco. Equerdismo e direitismo são fenômenos psicológico-políticos que podem ser vulgarmente caracterizados como “doenças” infantis que acometem a ambos os lados do espectro político.


Feita essa longa e reflexiva e necessária introdução, creio ser possível finalmente explorar de forma direta o conteúdo do título deste texto: como não ser um conservador. Imagino ter alcançado sucesso nas linhas acima em estabelecer o fundamento comportamental para tal objetivo de forma suficientemente clara. Mas, para que fique inquestionavelmente cristalino, permitam-me utilizar de um grande personagem da literatura inglesa: Sherlock Holmes.


Sobre um dos pilares do seu muito bem-sucedido método investigativo, o detetive inglês afirma: “É um velho preceito meu que, quando se exclui o impossível, o que resta, por mais improvável que seja, deve ser a verdade”. Em suma, trata-se do método de exclusão de Holmes, pelo qual excluem-se das possibilidades sobre determinado fato aquilo que ele sabidamente não é ou que não pode ser, de forma a afunilar as opções e pavimentar o caminho para que a realidade fática seja encontrada.


Traduzindo a máxima do detetive inglês para o objetivo aqui proposto: o primeiro passo para entender o que de fato é o conservadorismo é eliminar das possibilidades aquilo que ele não é. Isso se faz de extrema importância hoje em dia tanto por conta do uso indiscriminado e pejorativo da palavra por parte da esquerda para atacar seus adversários políticos e culturais, quanto por conta do uso irresponsável e desconexo de seu real significado por parte de uma parcela da própria direita.


De forma complementar, para alcançar o objetivo proposto é preciso dar ao leitor uma ideia mínima a respeito do que é o conservadorismo, a fim de estabelecer um parâmetro comparativo mínimo para os elementos a serem abordados pelo método de exclusão apresentado, assim como para não fugir à meta estabelecida e acabar involuntariamente buscando conceituar plenamente o conservadorismo – o que alongaria o presente texto mais do que já se alongou.


O conservadorismo pode ser compreendido como uma ideologia somente a depender da qualificação que se der a tal palavra. Se o termo for entendido como um conjunto de ideias dogmáticas, numa linha de raciocínio ideológica de um “mundo ideal”, assim como a das ideologias revolucionárias, então não podemos caracterizá-lo como uma ideologia. Já se o termo for utilizado como um mero conjunto de ideias que define um posicionamento político, então podemos dizer que o conservadorismo é uma ideologia. Porém, essa é somente a ponta do iceberg da discordância acerca deste ponto que existe dentre os próprios representantes do conservadorismo. Por isso muitos rejeitam a palavra e preferem caracterizá-lo como uma filosofia política, ou seja, como uma forma de compreender e refletir acerca da política, ou até mesmo como uma postura, uma disposição, uma mentalidade e uma posição política.


É esta última acepção que eu particularmente prefiro adotar, até por me parecer que tal interpretação é capaz de manter afastado a carga pejorativa do dogmatismo ideológico e, ao mesmo tempo, englobar o sentido aqui dado ao caráter de uma filosofia política. Sem mais delongas, neste sentido o conservadorismo pode ser entendido como uma disposição ou postura pessoal, uma mentalidade contrária a projetos políticos utópicos, ideológicos (dogmáticos, portanto) e arbitrários de remodelagem da sociedade e/ou da própria humanidade, expressa nas ideias presentes nas obras de pensadores e teóricos conservadores e na posição e prática política daqueles atores políticos ligados a tal tradição de pensamento. Ou seja, uma mentalidade frontalmente oposta à mentalidade revolucionária, sobre a qual tratei nesta coluna há duas semanas.


Tendo essa noção básica em mente, passo finalmente à exclusão daquele tipo de comportamento e posicionamento político infantil, que não pode ser caracterizado como consevador, mas sim como direitista. Comecemos pelo romantismo: a idealização do passado, de determinado tempo ou período histórico, tratando de somente apontar suas virtudes (supostas e factuais) e seus ignorar vícios. Essa mentalidade romântica tende a deixar uma pessoa cega perante os problemas do próprio período idealizado, e um exemplo brasileiro disso é a idealização do Regime Militar. Apesar do papel dos militares em afastar guerrilheiros comunistas do poder, estes foram responsáveis pela eliminação dos agrupamentos políticos de direita no país, deixaram a porteira cultural aberta para a esquerda revolucionária e tomaram medidas em direção à uma expansão gigantesca do papel do Estado na economia e a uma maior centralização do poder público. Um conservador adota uma postura crítica acerca dessas obviedades e, além disso, sabe muito bem que o passado já passou, e as características e condições específicas de determinado tempo não são as mesmas – o que impede o simples transporte para a realidade atual daquele estado de coisas já historicamente superado.


Uma postura reacionária (meramente reativa, pode-se dizer) também é igualmente oposta à conservadora. Isso não quer dizer que seja errado reagir à truculência verbal da esquerda, que insiste em chamar qualquer pedra que se mova de “fascista”, “nazista”, “racista”, “machista”, “homofóbico”, etc. Adotar uma postura reativa a tal comportamento histérico é não só legítimo como necessário. Porém, isso não deve ser feito na mesma moeda comportamental e sentimentalista, assim como não se deve adentrar em algum debate político desprovido de uma cuidadosa e prudente análise dos elementos pertinentes ao assunto posto à mesa, assim como das consequências das diferentes possibilidades de posicionamento. A reação pela reação não é saudável, e tratar automaticamente qualquer letra proferida por alguém que divirja do seu próprio posicionamento como desprezível pelo fato de ter saído da boca de alguém com quem divergimos é, infelizmente, um caso de falta de maturidade emocional.


Outro vício direitista é o chamado conservantismo: ou seja, quere conservar por conservar. O conservadorismo não é estático, ao contrário do que afirmam alguns representantes da esquerda, da mídia e até mesmo de pessoas da direita política, como alguns liberais e os próprios direitistas. O conservadorismo tem uma lógica evolucionária, que reconhece a necessidade de adaptação ao dinamismo da condição humana por meio de uma avaliação crítica dos aspectos positivos e negativos dos costumes, valores, tradições e instituições que sobreviveram ao teste do tempo. Quanto àquilo que for negativo, reforma-se quando possível e descarta-se o que for necessário. É errado prender-se ao passado, pois isso gera o imobilismo, o qual é justamente o contrário da capacidade de correção e aprimoramento inerente à ideia de evolução.


Outro problema do direitismo é a postura moralista, que pretende impor uma determinada moralidade ou projeto político aos demais indivíduos. Esse tipo de postura aproxima-se muito mais da mentalidade revolucionária, já que o indivíduo crê ter o direito, se não o dever, de impor seu próprio projeto político ou moralidade aos demais. É o famoso “salto alto”, uma defesa tosca da própria moralidade, entendida como sendo sempre superior à dos demais. Uma coisa é defender valores, tradições, costumes e instituições; outra bem diferente é buscar alcançar determinados objetivos meramente por meio da imposição embasada num sentimento de santimônia. Um conservador não impõe aos outros pois também não aceita que imponham alguma moralidade sobre ele. É simples assim.


Por fim, há a paixão política, que trata do apoio de forma acrítica a políticos, depositando uma espécie de fé no potencial salvador ou redentor de uma pessoa e da política em si. A utilização de termos e até mesmo a defesa verbal de determinados pontos de uma agenda política normalmente associada ao ideário conservador não necessariamente torna um político genuinamente conservador – e nem aquele que o apoia. Se o comportamento e as atitudes de tal político é destemperada, imoderada, imprudente, sua postura é evidentemente antagônica a uma postura pessoal baseada nas virtudes morais da prudência e temperança, herança cultural da filosofia grega e da teologia cristã, as quais compõem justamente a base moral do conservadorismo. Infelizmente essa paixão política tende a gerar nos apoiadores de tal classe de político uma espécie de reprodução automática e acrítica do comportamento deste último no qual a “fé” é depositada, gerando todo tipo de consequência socialmente desagregadora, algo flagrantemente contrário ao respeito tipicamente conservador pela ordem e pela estabilidade social.


Após todo esse relato pessoal reflexivo e toda essa exposição teórica, deixo bem claro que o objetivo deste texto não foi estabelecer uma espécie de “Inquisição” conservadora, um julgamento de quem é ou não conservador. Meu intuito aqui foi prover instrumentos ao leitor para uma reflexão pessoal política autocrítica, algo que sempre busco fazer.


Minha experiência pessoal de “migração” de campo político abriu meus olhos ao comportamento infantil que a falta de conhecimento político pode gerar, e me deixou sempre alerta quanto aos riscos de reproduzir novamente tal infantilismo, somente com um sinal invertido. Reconhecendo minhas falhas e imperfeições, gosto de considerar-me como alguém que acima de tudo tenta ser um conservador, e o tenta primeiramente por meio da eliminação de comportamentos e posicionamentos que claramente não correspondem ao conservadorismo.


Espero que minha experiência pessoal e a exposição teórica tenham influência positiva na vida daqueles que tenham sobrevivido até o final desta leitura. Afinal de contas, se a direita brasileira pretende fazer um pouco mais do que dar eventuais passeios pelo comando do país, temos de reconhecer a necessidade de uma maior qualificação de nossos representantes – e, acima de tudo, de nós mesmos.