A Ciência da Política
Data de publicação: 13 de outubro de 2023

As regras do jogo

Tullio Damin Da Sois

Chefe de Gabinete e Coordenador de Imprensa

Cientista Político


Uma pesquisa realizada pela AtlasIntel e divulgada em 31 de janeiro deste ano no programa WW, da CNN Brasil, apontou que a instituição que gera mais desconfiança na população brasileira é o Poder Legislativo federal, o Congresso Nacional. Mais da metade dos entrevistados, 57%, dizem não confiar no Congresso, enquanto somente 24% dizem confiar e 19% não souberam responder.


Não se trata de uma pesquisa isolada. As chamadas “ondas” do Estudo Eleitoral Brasileiro (Eseb), o qual é realizado periodicamente pelo Centro de Estudos de Opinião Pública (Cesop) da Unicamp, vêm demonstrando uma queda constante e vertiginosa ao longo dos anos da avaliação pública do trabalho dos parlamentares. As avaliações de desempenho como ótimo e bom dos congressistas saíram de 34,3% em 2002 para 5,4% em 2018, por exemplo.


Além disso, o último Eseb (2022) corrobora o caráter da desconfiança dos brasileiros em relação ao Legislativo como uma característica permanente e duradoura de nossa República – uma característica consistentemente verificável ao longo de pelo menos duas décadas nas mais diversas pesquisas de opinião que vêm sendo realizadas no país. O Estudo  traz os seguintes dados sobre a confiança no Congresso Nacional : 11,9% confiam muito; 17,2% possuem alguma confiança; 43,3% pouco confiam; e 24,1% não possuem nenhuma confiança. Somente 3,2% não souberam responder e 0,2% não quiseram responder. Já quanto aos partidos políticos brasileiros, o cenário é ainda pior: 3,7% confiam muito; 11,9% possuem alguma confiança; 44,8% pouco confiam; e 38,6% não possuem nenhuma confiança. No caso dos partidos, os números dos que não souberam ou não quiseram responder foram simplesmente insignificantes: 0,9% e 0,2%, respectivamente.


Os números mostram que, apesar das várias e recentes reviravoltas eleitorais, reformulações partidárias e até pequenas reformas eleitorais, sem contar os relativamente recentes esforços de combate à corrupção por parte das instituições policiais e judiciais, ainda estamos muito, mas muito longe mesmo de um nível minimamente decente de confiançada população brasileira em relação aos seus – nossos – representantes políticos.


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1 Pesquisa mostra que 24% das pessoas confiam no Congresso Nacional. CNN. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/politica/pesquisa-mostra-que-24-das-pessoas-confiam-no-congresso-nacional/

2 Artigo: Desconfiança no Congresso e responsabilidades eleitorais. Valor Econômico. Disponível em: https://valor.globo.com/politica/noticia/2022/09/02/artigo-desconfianca-no-congresso-e-reponsabilidades-eleitorais.ghtml


As razões para tamanha desconfiança são muitas, mas podemos sugerir tranquilamente que as principais são a sistemática falta de resultados positivos práticos ao país por parte do poder político brasileiro, assim como a falta de qualidade e de idoneidade de nossos representantes. Daí a extrema importância da mudança das regras pelas quais escolhemos os nossos representantes, ou seja, de uma Reforma Político-Eleitoral – aparentemente esquecida em meio às reformas mais conhecidas em meio ao público, dotadas de cunho administrativo, financeiro e econômico.


É verdade que a aprovação em 2017 da Emenda Constitucional n° 97 representou um avanço nessa área pois, ao proibir as coligações partidárias nas eleições proporcionais, obrigou os partidos a lançarem candidatos por conta própria aos cargos legislativos. Com isso, reduziu-se em muito o fenômeno dos “puxadores de votos”. Como os votos obtidos por todos os candidatos de uma determinada coligação antes eram somados e considerados de forma conjunta no cálculo de distribuição de cadeiras legislativas, alguns poucos candidatos dentro de tal coligação que obtinham votações muito expressivas acabavam “puxando” junto com eles candidatos de baixa expressão eleitoral da mesma coligação, ao passo que outros candidatos com resultados mais expressivos nas urnas ficavam de fora da distribuição de cadeiras. Apesar disso, a mudança é tímida se comparada ao tamanho do problema estrutural do sistema representativo, tendo abordado somente um de seus aspectos problemáticos mais superficiais.


Uma Reforma Política muito mais ampla e profunda é necessária, pois o problema de nosso sistema representativo possui ao menos duas dimensões principais e complementares: a eleitoral-representativa e a político-partidária.


A segunda dimensão é um pouco mais conhecida do público e trata, em resumo, do número exacerbado de partidos políticos no Brasil e das formas de financiamento e de acesso a recursos públicos pelos mesmos. Tratemos sucintamente dos problemas desta dimensão. De forma mais evidente, podemos destacar a facilidade de acesso e a alta dependência de recursos públicos para o custeio das atividades partidárias, situação agravada pela recente limitação das doações eleitorais de fontes particulares (que serão ainda mais limitadas em caso de aprovação também pelo Senado do PL 4.438/2023, que limita o montante permitido para as doações por pessoa física a no máximo R$ 2.850,97) e pela criação e expansão do chamado Fundo Eleitoral, destinado ao custeio de campanhas eleitorais – além do já existente Fundo Partidário.


Além disso, destaca-se a alta fragmentação partidária característica de um país com dimensões continentais como o Brasil, decorrente tanto das diferenças regionais e locais quanto da própria facilidade de acesso aos recursos públicos. Este último aspecto se traduz na existência de muitos pequenos partidos que, de forma conjunta, controlam uma parte expressiva do poder político e acabam por tornar-se necessários para a composição de maiorias nas casas legislativas – o que leva a política em geral a um caminho de negociações muita vezes espúrias, cujos resultados são o afago dessas pequenas elites partidárias através da manipulação de vantagens, benefícios, posições e cargos públicos. Tal situação vem sendo endereçada por meio da criação da cláusula de barreira. Esta, ao condicionar o acesso dos partidos políticos aos recursos públicos que os financiam  a determinadas metas de desempenho eleitoral, acabam por forçar à fusão ou incorporação dessas micro agremiações por siglas maiores, reduzindo paulatinamente o número de partidos no país. Os interesses localistas e particularistas típicos das características político-geográficas brasileiras, a tal da “política tradicional”, porém, tende a permanecer, agora abrigada sob alguns guarda-chuvas maiores. Afinal de contas, a raiz do problema não foi solucionada, somente a sua forma.


A primeira dimensão da Reforma Política, a eleitoral-representativa, no entanto, é mais complexa – e, provavelmente por conta disso, menos evidente. Vejamos seus diversos aspectos problemáticos, começando pelo sistema eleitoral brasileiro, que é o de voto proporcional em lista aberta. Neste sistema, a lista de candidatos de cada partido é ordenada de forma decrescente, após a votação e de acordo com os candidatos mais bem votados. Porém, a distribuição de vagas fica condicionada em primeiro lugar ao desempenho das legendas partidárias: antes se considera o total de votos da legenda, e depois são realizados os cálculos do quociente eleitoral e do quociente partidário, que definem a distribuição de cadeiras entre os partidos. Quanto maior a votação total de um determinado partido, maior o número de cadeiras às quais ele terá o direito de ocupar – e serão os candidatos mais bem votados de cada legenda que assumirão tais vagas. Além disso, o sistema eleitoral brasileiro possui circunscrições (distritos) eleitorais integrais; ou seja, não há segmentação regional do eleitorado, sendo todo o território de um estado ou de um município a circunscrição na qual todo e qualquer candidato terá de conquistar seus votos.


Os resultados dessas regras em um país com o tamanho e as disparidades regionais como o Brasil são trágicos. Os brasileiros geralmente não se lembram em quem votaram para cargos legislativos nas últimas eleições, pois o incentivo de tais regras é fazer com que os partidos lancem um número altíssimo de candidatos na busca pela obtenção da maior votação total possível. Essa infinidade de opções confunde a cabeça do eleitor e afeta a memória eleitoral do mesmo, ainda mais pelo fato de que a maioria dessa infinidade de candidatos acaba nunca sendo eleita.


Uma segunda consequência de nosso sistema é o distanciamento, ou até mesmo a ausência, de um genuíno vínculo de representação política e de cobrança, de responsabilidade entre o representante político e o seu eleitor. Afinal de contas, as bases eleitorais são muito difusas ou até mesmo verdadeiras incógnitas, o que restringe a votação por orientação e consciência própria, além de tornar os representantes mais suscetíveis a quaisquer outros tipos de pressão política que não àquela dos seus eleitores.


O tamanho dos distritos eleitorais gera também um terceiro problema. Já que eleitores de qualquer parte do estado ou município podem votar em qualquer candidato de qualquer cidade, região ou bairro, e estes últimos têm de fazer campanha para o estado ou a cidade inteira, os custos de uma campanha acabam ficando muito altos, o que abre as portas para a corrupção e desestimula a participação de mais pessoas de boa índole na disputa eleitoral.


Por fim, um quarto problema é o favorecimento do casuísmo partidário: se o candidato A julgar ter poucas chances de alcançar a votação necessária para ser eleito pelo partido X, ele pode migrar para o partido Y para aumentar suas chances de eleição. Além disso, esse ponto também enfraquece drasticamente o desenvolvimento de interesses políticos mais coerentes e articulados, ligados a objetivos de longo prazo e a visões ideológicas mais autênticas e transparentes, tudo em favor de interesses meramente eleitoreiros.


Infelizmente os problemas da dimensão eleitoral-representativa não param por aí. Apesar da Emenda Constitucional n° 97 ter proibido as coligações proporcionais, a mesma não eliminou a possibilidade de se formar coligações eleitorais sem vinculação das alianças partidárias entre a esfera nacional e as esferas subnacionais. Apesar de representar um elemento que, sob a ótica da dimensão espacial, representaria uma maior autonomia regional e local, essa característica dificulta ainda mais uma maior coesão e transparência político-ideológica no país e, por conseguinte, uma visão de longo prazo para a Nação, obscurecendo ainda mais as opções eleitorais disponíveis à população.


Há ainda que se fazer uma menção – importantíssima, por sinal – às distorções na representação dos estados na Câmara dos Deputados – crítica essa que também pode ser direcionada à representação nas Assembleias Legislativas de cada estado. Três fatores podem ser apontados como causas dessas distorções. O primeiro e o segundo fatores são, respectivamente, a definição de um número mínimo e de um número máximo de deputados por estado da Federação, independentemente da dimensão de suas populações. Esses fatores contam ainda com o agravante fato de que as normas que definem a distribuição de cadeiras na Câmara utilizam intervalos crescentes: a partir de um determinado nível, é maior o número de habitantes ou eleitores necessários para que um estado aumente o tamanho de sua bancada. Por fim, o terceiro fator de distorção representativa é a ausência de uma revisão periódica do número de deputados de cada estado em relação às alterações ocorridas nas suas respectivas populações.


Esse conjunto de fatores, por sua vez, leva a um grave problema: a sobre-representação de estados de menor contingente populacional e a sub-representação de estados com maiores contingentes populacionais. Ora, o espaço para a representação de forma igual é o Senado, e o espaço para a representação proporcional da população do país é a Câmara. Porém, de forma geral, os estados sub-representados são os mais desenvolvidos e industrializados do país, enquanto que os estados sobre-representados correspondem aos menos desenvolvidos e industrializados e, portanto, mais dependentes de repasses redistributivos de recursos públicos arrecadados pela União.


A consequência disso para a política nacional é auto evidente: há uma clara distorção representativa que favorece desproporcionalmente a representação política de regiões mais atrasadas e, portanto, mais sujeitas às práticas políticas tradicionais de elites locais e regionais, cujos objetivos se centram muito mais na busca de cada grupo por objetivos patrimonialistas: ou seja, em conquistar, aumentar, direcionar e usufruir dos quinhões de poder e do acesso a recursos e cargos públicos junto à continuamente agigantada estrutura estatal brasileira.


Se mesmo após a apresentação de todos estes dados e argumentos você não se convencer de que uma profunda Reforma Política não é somente necessária, mas urgentemente necessária e, por que não, a mais prioritária para o nosso Brasil, então não sei o que o fará ter tal compreensão. A altíssima desconfiança da população brasileira em seus representantes não é fruto do acaso. Muito pelo contrário, ela é extremamente compreensível.


A condução qualificada dos rumos de nosso país é refém de longa data de uma classe política em grande parte corrupta, particularista, ineficiente e desvinculada daqueles que ela supostamente representa. Há que se mudar o modo pelo qual escolhemos os nossos representantes, e urgentemente. Afinal de contas, são as regras que fazem o jogo – e enquanto as regras de nosso sistema representativo se mantiverem como estão, nunca teremos confiança no jogo.